31 de março de 2015


Afinal, a lepra é causada por duas bactérias

31/03/2015 

Sete anos depois de uma segunda espécie de bactéria da lepra ter sido isolada num doente mexicano, o seu genoma foi sequenciado. A Mycobacterium lepromatosis separou-se da bactéria mais comum da lepra há quase 14 milhões de anos.
 
Para uma doença já famosa no tempo de Jesus Cristo, ainda há muitos aspectos desconhecidos sobre a lepra. Até há poucos anos, apenas se conhecia uma bactéria que originava esta doença, o bacilo Mycobacterium leprae. Mas em 2008 encontrou-se um outro bacilo num doente com lepra oriundo do México, o Mycobacterium lepromatosis. Uma equipa de cientistas sequenciou agora o genoma da nova espécie e comparou-o com o da antiga. Os resultados mostram que os dois bacilos são semelhantes, embora se tenham separado na árvore evolutiva há quase 14 milhões de anos, adianta um artigo na revista norte-americana Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
“Para nosso espanto, descobrimos que, estruturalmente, os dois genomas são muito semelhantes, apesar de terem divergido há muito tempo”, diz ao PÚBLICO Andrej Benjak, investigador da Escola Politécnica Federal de Lausana, na Suíça, e um dos autores do artigo publicado pela equipa liderada por Stewart Cole, que fez a sequenciação do genoma.
Esta informação sobre o genoma é importante. Quando se identifica uma bactéria nova associada a uma doença antiga, é necessário compreender se essa bactéria está, de facto, a originar a mesma doença ou uma doença semelhante. A descodificação do genoma – ao mostrar as características da bactéria, como o tipo de células humanas que é capaz de infectar – ajuda a desvendar esta questão.
No caso da lepra, tudo aponta para ambos os bacilos causarem a doença, explica Andrej Benjak: “As duas espécies não só são semelhantes em relação ao tamanho do genoma, como também têm os mesmos grupos de genes. Isto significa que, provavelmente, a biologia das duas espécies é muito semelhante.”
A lepra é uma doença infecciosa crónica e muito antiga. Terá surgido por volta de 2400 anos a.C., no Médio Oriente. O caso mais antigo de lepra que se conhece é o de um homem que viveu entre 1 e 50 anos d.C., cujo corpo foi encontrado nos arredores da cidade de Jerusalém. Análises ao ADN dos vestígios mostraram que o indivíduo tinha tido lepra. Ao longo dos séculos, a doença espalhou-se pelo mundo, estando associada à pobreza. Os leprosos, devido à sua aparência impressionante e por transmitirem uma doença então incurável, foram muitas vezes isolados e ostracizados.
Em 1873, Gerhard Armauer Hansen, um médico norueguês, identificou o agente patogénico que causa a lepra. A Mycobacterium leprae tornou-se então a primeira bactéria a ser associada a uma doença humana. E a lepra passou a ser também conhecida pela doença de Hansen, em referência ao médico.
Hoje, sabe-se que esta bactéria se multiplica muito lentamente e ataca os nervos periféricos, mais especificamente as células de Schwann. Estas células, que dão apoio ao sistema nervoso, envolvem as células nervosas com camadas de mielina, uma substância rica em gordura que permite a rápida propagação dos impulsos nervosos. Quando atacadas pelas bactérias, as células de Schwann morrem, o sistema nervoso começa a deixar de funcionar e os doentes começam a deixar de ter sensações em determinadas regiões da pele. E o resultado é uma neuropatia periférica. Um dos testes que ajuda a diagnosticar esta doença afere a sensibilidade das pessoas em zonas da pele onde surgem manchas. Mas além da pele, a doença afecta também as mucosas das vias respiratórias superiores e os olhos.
Depois de alguém ficar infectado pela bactéria, pode passar um grande período sem que a doença se manifeste. O período de incubação médio é cerca de cinco anos, mas os sintomas podem demorar 20 anos ou mais a surgir. Quando não é tratada, a doença causa danos permanentes na pele, nos nervos, nas mãos e nos pés e nos olhos, descaracterizando as pessoas, e destruindo os dedos. Os doentes acabam por ficar dependentes de terceiros para fazerem a sua vida diária.
Desde a década de 1960 que há vários antibióticos para tratar a doença. Em 1995, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a distribuir de forma gratuita o tratamento à base de três antibióticos, o que permitiu reduzir muito a prevalência da lepra. Nos últimos 20 anos, 14 milhões de doentes com lepra foram curados. Em muitos países, a lepra foi erradicada – a OMS considera que um país deixa de ter lepra quando há menos de um caso por 10.000 habitantes. Em Portugal, entre 2009 e 2012 houve 31 casos importados de lepra, segundo o relatório Doenças de Declaração Obrigatória 2009-2012, da Direcção Geral da Saúde.
Ainda assim, todos os anos, há mais de 200.000 novos casos a nível mundial. E a doença é um problema em países como Angola, Brasil, República Democrática do Congo, Índia, Indonésia, Madagáscar, Moçambique, Nepal, Nigéria ou Sudão. Só a Índia teve mais de 127.000 novos doentes em 2011.
Bactérias incultiváveis
“Em 2008, uma nova espécie de micobactéria chamada Mycobaterium lepromatosis foi identificada numa autópsia de um sem-abrigo mexicano, que morreu no Arizona, Estados Unidos, com lepra do tipo lepromatosa difusa”, lê-se no novo artigo da PNAS, que têm ainda como autores investigadores da Universidade de Tubinga e do Instituto Max Planck para a Investigação da História Humana, em Jena, ambos na Alemanha, e da Universidade Autónoma de Nuevo Leon, no México. A lepromatosa difusa é uma forma mais grave de lepra, comum na região ocidental do México e na região das Caraíbas.
A equipa de Stewart Cole foi investigar melhor a nova espécie de bactéria. Uma das dificuldades do estudo dos dois bacilos – tanto do Mycobacterium leprae como do novo Mycobaterium lepromatosis – é que não é possível cultivá-los no laboratório. “O genoma [destas bactérias] perdeu todos os genes que são necessários para elas sobreviverem fora das células hospedeiras”, explica Andrej Benjak.
Esta impossibilidade dificulta a investigação destas bactérias. Há ainda muitas perguntas sobre a lepra. Por exemplo, não se sabe como é que os bacilos conseguem fugir ao nosso sistema imunitário, nem como e quando é que infectaram a espécie humana. Também não se explicou ainda por que é que o período de incubação é tão variável (há casos de bebés em que a lepra aparece poucos meses depois de terem estado em contacto com alguém infectado), nem se compreendeu completamente como é que as bactérias se transmitem. No seu site, a OMS refere que, apesar de não ser muito infecciosa, a lepra é transmitida pelas gotículas do nariz ou da boca de um doente, que não está a ser tratado, quando contacta com alguém saudável.
Com a descoberta da nova bactéria em 2008, surgiram ainda mais dúvidas, diz Andrej Benjak: “Ainda não sabemos se a Mycobacterium lepromatosis pode causar outras formas de lepra, ou se pode causar sintomas novos que nunca foram identificados ou nunca foram associados à lepra.”
Por isso, foi necessário sequenciar o genoma da Mycobacterium lepromatosis. “O primeiro passo para compreender um novo microorganismo é sequenciar o seu genoma e, se tal for possível, compará-lo com um genoma que esteja relacionado a nível evolutivo”, explica Andrej Benjak. Para tal, houve que utilizar o ADN do bacilo obtido numa biópsia de um doente do México, e ampliá-lo com técnicas de engenharia genética.
Ao compararem os genomas da Mycobacterium leprae e da Mycobaterium lepromatosis, os cientistas chegaram à conclusão de que 92% dos genes das duas bactérias são iguais, o que as torna muito semelhantes. Além disso, estimaram que as duas espécies se separaram há 13,9 milhões de anos. O antepassado comum destas bactérias foi perdendo a função de muitos genes, e os dois bacilos continuaram esse processo depois de se separarem em duas espécies, embora essa perda posterior tenha ocorrido em regiões diferentes do genoma de cada uma das espécies.
Os investigadores confirmaram ainda que o novo bacilo tem todos os genes necessários para infectar as células de Schwann. “Isto significa que é capaz de causar neuropatia periférica em humanos, a característica principal da lepra”, diz Andrej Benjak, explicando que, se a Mycobacterium lepromatosis não infectasse aquelas células, apenas causaria uma doença de pele e não a lepra.
Por agora, a equipa só encontrou a nova bactéria em doentes do México, embora também a tenham procurado em doentes do Brasil, do Mali e da Venezuela. Segundo Andrej Benjak, o próximo passo é tentar fazer um mapa-múndi da nova espécie: “Primeiro, queremos analisar mais amostras [de tecidos com bactérias] do México e da área envolvente. Depois, gostaríamos de fazer um mapa geográfico da Mycobacterium lepromatosis para ver a distribuição mundial deste agente patogénico. Isto contribuirá para compreender a evolução tanto da Mycobacterium lepromatosis como da Mycobacterium leprae. Estes novos conhecimentos poderão ajudar a desenvolver estratégias mais eficazes de monitorizar e prevenir esta doença.”