Abril e a liberdade religiosa
O que trouxe Abril de novo, do ponto de vista da liberdade religiosa? A mudança está contida numa única palavra: reconhecimento.
Trouxe o 25 de Abril a liberdade religiosa? Se limitarmos a liberdade
religiosa à liberdade de culto, a resposta é não. Como forma de
possibilidade individual de professar a religião da sua escolha, a
liberdade de culto existia antes do 25 de Abril e até, embora com sérias
reservas, antes mesmo da revolução republicana. No século XIX, com o
liberalismo e a extinção da Inquisição, os fiéis não-católicos passam a
ter a possibilidade de praticar a sua religião.
As limitações são, no entanto, importantes: a
prática do culto não-católico é apenas reconhecido aos estrangeiros e o
seu exercício obrigatoriamente privado, sem expressão pública, incluindo
a visibilidade dos seus templos. Trata-se assim de “tolerância”, não de
liberdade: a religião católica é a religião do reino e os súbditos
nacionais não têm outra opção. No entanto, e encarando a liberdade, e em
particular a religiosa, como um processo sempre em movimento, o avanço é
significativo: no caso concreto do judaísmo, embora considerados como
uma “colónia” estrangeira sem reconhecimento legal, os judeus frequentam
os seus espaços de culto privados, enterram os seus mortos segundo o
ritual judaico, praticam livremente a beneficência judaica em
organizações cujos estatutos são aceites.
A República vai mais
longe. A Lei da Separação da Igreja do Estado, de 20 de Abril de 1911,
confere a personalidade jurídica às confissões não-católicas e permite a
visibilidade pública dos seus templos. Trata-se, sem dúvida, de um
avanço significativo para as confissões não-católicas. No entanto, não
podemos ainda falar de liberdade religiosa: em primeiro lugar, porque,
decalcada do modelo da lei francesa de 1905, é visceralmente uma lei
anticlerical e, em segundo, lugar porque as confissões não-católicas são
reconhecidas apenas sob a forma de associações privadas cultuais, não
como confissões religiosas, o que, na verdade, camufla a sua verdadeira
natureza sociológica. Assim, os estatutos da Comunidade Israelita de
Lisboa são reconhecidos a 23 de Julho de 1912, por alvará do governo
civil, como “Associação de culto israelita, beneficência e instrução,
denominada Comunidade Israelita de Lisboa”.
O Estado Novo consagra
a liberdade de culto na Constituição de 1933, mas as comunidades
não-católicas permanecem corpos estranhos à sociedade. Não fazem parte
da nação portuguesa. Sem ser religião oficial do Estado, a Igreja
Católica é, de facto, a única religião reconhecida e legitimada.
Individualmente, os não-católicos têm os mesmos direitos como cidadãos
nacionais, mas a expressão pública e colectiva da sua prática religiosa
não existe, o low profile é a regra, e nada está previsto na
legislação que tenha em conta as suas particularidades religiosas: o
reconhecimento destas depende da boa vontade dos interlocutores do
momento. Exemplificando de novo com a comunidade judaica, a
possibilidade de não trabalhar ou fazer exames ao sábado ou durante as
festividades religiosas dependia de uma negociação entre as partes, sem
nunca ser reconhecida na lei. Da mesma forma, o ensino da religião nas
escolas públicas ou a isenção de impostos eram benefícios exclusivos da
Igreja Católica e o regime jurídico determinado pelo código civil
continuava a não reconhecer a natureza religiosa das confissões
não-católicas. Apesar disto, é preciso dizer com clareza: durante a
ditadura salazarista a liberdade de culto privado nunca esteve em causa.
Então o que trouxe Abril de novo, do ponto de vista da liberdade religiosa? A mudança está contida numa única palavra: reconhecimento.
E sem reconhecimento não se pode falar em liberdade, porque esta não se
restringe a tolerar a existência privada de um culto “outro”. O
reconhecimento implica aceitar como igual o que é diferente: igual em
direitos, igual em deveres, igual em oportunidades; implica viver a
diferença como natural, a diversidade como fazendo parte intrínseca das
sociedades, e a tensão daí decorrente como um elemento criativo. A
homogeneidade, o nivelamento, a negação da diversidade são sempre
factores de empobrecimento, nomeadamente quando forçados. São contra a
própria corrente da vida.
A mudança aberta com a revolução de
Abril não se fez de repente, mas muito progressivamente, e está longe de
estar terminada. O principal factor de mudança foi, como não podia
deixar de ser, a instauração da democracia e da liberdade política. O
fim da guerra colonial e a implantação de novas minorias étnicas e
religiosas em território português, a abertura do país ao mundo e
sobretudo a liberdade de pensamento, de expressão e de circulação de
ideias, fazem surgir uma nova atitude face à diversidade religiosa e
cultural. Portugal, hoje, é uma sociedade onde coexistem diversas
minorias religiosas com uma prática aberta, expressão colectiva e
visibilidade pública e estes elementos são determinantes na integração
social dos seus fiéis. No fundo, quanto maior for a aceitação da
diferença, mais fácil é o processo de integração".